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O artesão e o analista

Entre arqueólogos, rendeiras e luthiers

Haverá paradeiro para o nosso desejo
Dentro ou fora de um vício
Uns preferem dinheiro
Outros querem um passeio perto do precipício

Haverá paraíso
Sem perder o juízo e sem morrer
Haverá para-raio
Para o nosso desmaio
Num momento preciso

Uns vão de para-quedas
Outros juntam moedas antes do prejuízo
Num momento propício
Haverá paradeiro para isso?

Haverá paradeiro
Para o nosso desejo
Dentro ou fora de nós?

("Paradeiro", composição de Antônio Carlos Santos de Freitas, Arnaldo Antunes e Marisa Monte)

A psicanálise ocupa um lugar no imaginário e na cultura popular. Freud virou uma espécie de ícone da cultura pop, tal qual as latas de sopa Campbell’s de Andy Warhol: sua face está estampada em camisetas e canecas, enquanto os conceitos psicanalíticos foram sendo diluídos e popularizados, virando frases de efeito – desde Freud explica, até a tentativa de transformar "histérica" em termo ofensivo às mulheres.

Ao memso tempo, criou-se uma curiosidade acerca da figura no analista. No conceito do dicionário Aurélio: especialistas em Psicanálise. Fui então pesquisar no “Dicionário analógico da Língua Portuguesa” de Francisco Ferreira dos Santos Azevedo - truque do grande Chico Buarque – e a palavra está ali acomodada entre “psiquiatra” e “alienista”, junto a outras tantas que remetem a um profundo saber.

No entanto, vejam só, ser especialista remete ao domínio da técnica e em nosso ofício isso não basta. A teoria será o norteador do tratamento, mas outros componentes devem entrar nesse campo: a escuta, a sensibilidade do manejo, a transferência, a atenção flutuante, a capacidade de criar no setting o ambiente no qual o paciente irá produzir saber sobre si mesmo.

Em “Construções na análise” (1937), Freud percebeu a proximidade entre o fazer do analista e do arqueólogo: dentre outras conclusões, aponta que ambos possuem “o direito inquestionável de reconstruir pela complementação e pela integração dos restos conservados”. A diferença está justamente no fato de que o arqueólogo lida com objetos destruídos, buscando recontar a História, enquanto o analista lida com o objeto psíquico, procurando com isso levantar a pré-história do paciente.

Nosso ofício carrega um caráter artesanal , no sentido de que técnica não garante uma produção em série, mas sim a peça única, feita sob medida. Somos como luthiers (mistura de físico, marceneiro e músico), em seu trabalho de burilar a madeira, senti-la, perceber a direção dos veios, de produzir a caixa de ressonância dos instrumentos de corda e finalmente, o instrumento em si.

O ato de tecer a renda, entrelaçando velozmente os fios de algodão, seja em bilros, agulhas ou nós, exige das rendeiras habilidade artesanal e técnica. Isso é um ofício. Ainda que movimentos específicos sejam necessários para produzir desenhos ou esperados padrões, o resultado nunca será o mesmo, pois a subjetividade está ali presente, de modo invisível, no tear. Isso é a metáfora da clínica psicanalítica.

A poesia dessa metáfora pode romantizar o sentido do que é a análise, mas saibam que titubear também faz parte do percurso - tanto do paciente, quanto do analista. Duvidar da espessura do fio, pensar se irá aguentar suficientemente a tensão, vê-lo se romper e contrariado decidir por outro rumo e recorrer à emenda. Se fez a precisa escolha de cores e tons. Desfazer o ponto e recomeçar. Hesitar se escolheu a melhor madeira para ressoar as notas, se fez o melhor conserto possível, o mais fino ajuste. Mas dali sairá o violão com o qual o paciente poderá compor suas próprias canções. Do tear da clínica sairá a renda que ao fim, será a roupa que o paciente usará na vida. Essa é a beleza da psicanálise.

AZEVEDO, F. F. S. Dicionário analógico da Língua Portuguesa: ideias afins. São Paulo: Lexikon Editora, 2019.

FERREIRA, A. B. H. Dicionário Aurélio. [S. l.], [s. d.]. Disponível em: https://www.dicio.com.br/aurelio-2/. Acesso em: 18 de janeiro de 2025.

FREUD, S. Construções em Análise. In: ______. Moisés e o Monoteísmo, Compêndio de Psicanálise e Outros Textos (1937-1939). São Paulo: Companhia das Letras, 2010. v. 19, p. 189-199.